terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Comentários a cerca da Ceia do Senhor.



(Texto escrito para publicação em Caderno Especial de “O Estandarte”,
na edição do mês de outubro de 2001)
A REFORMA E OS SACRAMENTOS: A CEIA DO SENHOR

Introdução
Tenho a impressão de que a maioria dos membros de nossas igrejas, inclusive presbíteros(as) e pastores(as), não sabem o significado da Mesa do Senhor.
Certa vez participei do culto em uma de nossas igrejas e a Ceia foi celebrada antes do sermão. Já presenciei celebrações em que ao invés de se elevar a Deus uma oração de “ação de graças” (aliás, o significado da palavra “eucaristia”), o pastor orou “consagrando os elementos” da Ceia. Ouvimos de pastores(as) e membros da igreja que o pão e o vinho são apenas símbolos do corpo e do sangue de Cristo. Há algum tempo atrás, um antigo membro da igreja me disse: “Seria ruim se nós participássemos da Ceia todo domingo. A Santa Ceia ia se tornar uma coisa rotineira. É bom quando acontece uma vez por mês. Todo mundo fica esperando o primeiro domingo. A igreja fica cheia nesse dia...”. E o que dizer do “clima” da celebração da Ceia? Os membros seguram o pão e o cálice em suas mãos e participam em um misto de solenidade e tristeza.
Estas cenas observamos em nossas comunidades. Por isso pergunto: o que está acontecendo no momento em que celebramos a Ceia do Senhor? Seria proveitoso que, quando comemoramos mais um aniversário da Reforma Protestante, buscássemos responder a essa questão voltando os nossos olhos para os próprios reformadores, especialmente João Calvino. É o que pretendemos fazer.


A Ceia do Senhor Antes da Reforma
Como estava a liturgia antes da Reforma?
O culto não ia nada bem. A Igreja estava dividida entre clero e leigos. A liturgia era alguma coisa que o sacerdote fazia em favor do povo. O sacerdote fazia, o povo assistia. Passou-se a desvalorizar a Palavra e sua proclamação no culto. A missa era realizada em latim. Os leigos nada compreendiam. O povo também não falava e nem orava no culto. Tudo era feito pelo sacerdote, de maneira incompreensível e muitas vezes inaudível. Restava ao povo contemplar o que estava acontecendo.
E quanto à Ceia do Senhor? Na liturgia, tudo servia como preparação para a Eucaristia. A missa eucarística era entendida como um sacrifício que o sacerdote apresentava pelos pecados do povo. Era como se o sacrifício de Cristo fosse repetido. Desenvolveu-se nessa época a idéia de que os sacramentos causam a graça de Deus. Não é Deus quem, diretamente, causa a graça. Os sacramentos eram entendidos como eficazes por si mesmos, tinham poder próprio. Contudo, quem celebrava os sacramentos era o clero. O sacerdote era um ser poderoso, que administrava e infundia a graça. Tudo dependia de sua consagração. Imaginava-se que, a partir dessa consagração, as substâncias do pão e do vinho eram transformadas, respectivamente, nas substâncias do corpo e do sangue de Cristo. O povo, ao receber a hóstia consagrada, recebia verdadeiramente a carne de Cristo e o sacerdote, ao beber do cálice, bebia verdadeiramente o sangue de Cristo. Essa doutrina foi chamada de “transubstanciação”.
O povo começou a sentir-se muito indigno de participar da Ceia do Senhor, pois tratava-se do próprio corpo natural de Cristo presente. Induzido pelo clero, deixou de comungar com regularidade. Ao povo só restava contemplar e adorar a hóstia, a carne e o sangue de Cristo presentes diante de seus olhos. O ponto alto do culto era quando o sacerdote fazia Cristo tornar-se corporalmente presente na Ceia.


A Reação dos Reformadores e Suas Divergências Quanto à Ceia do Senhor
A Reforma transformou a liturgia. Os reformadores procuraram: - restaurar a idéia de que o culto é uma tarefa de todo o povo de Deus; - recuperar a importância das Escrituras e do sermão no culto; - realizar o culto na língua que o povo entendia; - aumentar a freqüência da celebração da Ceia; - varrer da liturgia a suntuosidade e tudo aquilo que havia sido agregado por conta da tradição.
Os líderes da Reforma concordavam em muitos assuntos, mas não concordavam em tudo. O pensamento acerca da Santa Ceia foi um dos motivos de divisão entre eles. Citaremos, rapidamente, as opiniões de Lutero, Zuínglio e Calvino sobre esse assunto.
Lutero, junto com os outros reformadores, negou boa parte das doutrinas romanas sobre a Ceia. Não aceitava a Eucaristia como obra meritória. Não aceitava a Eucaristia como uma repetição do sacrifício de Cristo. Não aceitava que o cálice da Santa Ceia fosse negado aos fiéis. Não aceitava o “milagre supérfluo” da transubstanciação. Para Lutero, a Ceia do Senhor, ao lado da proclamação da Palavra, era o centro do culto. O sacramento vale pela graça que o acompanha e é eficaz na medida em que o povo participa dele com fé.
Lutero acreditava que a presença de Cristo na Ceia vai além de uma presença simbólica. Entendia que, o corpo de Cristo pode se fazer presente na Ceia, da mesma forma como a sua natureza divina se fazia presente no homem Jesus. Para Lutero, na Ceia, ao mesmo tempo em que estão presentes o pão e o vinho, também estão presentes o corpo e o sangue de Jesus, ou seja, o corpo e o sangue de Cristo estão presentes “em”, “com”, “debaixo”, “ao redor” e “por trás” do pão e do vinho. Esta doutrina ficou conhecida como “consubstanciação” e acabou se tornando o ponto de conflito entre o reformador alemão e os reformadores suíços. Entre eles, Zuínglio.
Zuínglio queria que tudo estivesse de acordo com a Bíblia. Por isso, restaurou em Zurique a celebração da Ceia em ambas espécies. Para ele, a presença corporal de Cristo na Ceia era inútil. O corpo de Cristo encontra-se no céu ao lado do Pai e não pode se fazer presente na terra durante a Ceia. O corpo natural de Cristo não pode ser “mastigado”. Só podemos enxergá-lo com os olhos da fé. Mas Cristo não está ausente na Ceia. A Ceia é mais do que um ato humano. Ela é o sinal da graça de Deus. Se Deus não está presente, a graça e a resposta de fé não acontecem.
Zuínglio acreditava que a Ceia do Senhor é um ato de comemoração e representação simbólica da paixão e morte de Jesus, uma lembrança do sacrifício suficiente de Cristo. A Igreja, ao comungar, transforma-se no Corpo de Cristo.
Zuínglio aumentou a freqüência da celebração da Eucaristia de uma para quatro vezes ao ano. Assim o povo participava mais vezes da Ceia e a Mesa era “protegida” daqueles que não observassem uma vida cristã impoluta. Quando a Ceia não era celebrada, realizava-se o culto com o sermão. O resultado era que, na maioria dos cultos, a Palavra e a Eucaristia estavam separados.
E Calvino, o que pensava? Para Calvino, a consubstanciação de Lutero encerrava a presença física de Jesus no pão e no vinho, e o simbolismo de Zuínglio esvaziava a Ceia da presença do Senhor. Calvino afirmava que Cristo está verdadeiramente presente na Eucaristia. Esta presença não é física, como na transubstanciação e na consubstanciação, mas nem por isso deixa de ser real e válida. Para Calvino, falar da presença de Cristo na Ceia é falar de um mistério. Só podemos sentir a sua presença pela fé. Só podemos entender a sua presença real e espiritual se levarmos em consideração a ação do Espírito Santo. É o Espírito quem torna possível a santa presença na Ceia.
Calvino defendia que os símbolos da comunhão nunca são coisas vazias, lembranças do sacrifício de Cristo. Os símbolos foram escolhidos por Deus para comunicar a sua graça. Os símbolos não se transformam, não se misturam, não se confundem com a realidade que querem significar. A realidade do sacramento e os símbolos são coisas distintas, possuindo, porém, afinidade na medida em que Deus, por seu Espírito, está agindo. E isto só acontece para aqueles que possuem fé.
Para Calvino, a Ceia do Senhor é o banquete que sustenta a vida cristã. Todos aqueles que foram admitidos à Igreja pelo Batismo, precisam ser nutridos pela Eucaristia. Na Mesa, o Cristo ressurreto comunica a vida. O ser humano é fraco e imperfeito. Sua fé é insuficiente. Precisa alimentar-se de Cristo. Este alimento espiritual só se encontra na Palavra proclamada e selada na Ceia do Senhor. Por isso Calvino insistia para que a Ceia fosse celebrada em todo o culto, pois somos fracos e precisamos ser nutridos por Deus.
Um último ponto. Para Calvino, não existe Ceia fora da Igreja e não existe Igreja sem a Ceia do Senhor. A Ceia é para a comunidade dos batizados e deve ser sempre celebrada no contexto do culto.

Conclusão
Concluindo. Todos os reformadores entendiam que a Ceia do Senhor era essencial no culto e na vida cristã. Ainda assim divergiam. Essas divergências focalizavam-se na questão da presença de Cristo na Ceia. Todos concordavam que Cristo se faz presente na Ceia. Discordavam quanto à forma dessa presença. Nós, presbiterianos, fomos influenciados pelas idéias de Zuínglio. Por um lado, ignoramos a opinião de Calvino sobre a presença de Cristo na Ceia e dizemos que o pão e o vinho são símbolos do corpo e do sangue de Jesus. Por outro lado, realizamos mais cultos onde a Palavra é proclamada e a Ceia não é celebrada.
O pensamento dos reformadores, em especial o de João Calvino, nos desafia. Deveríamos refletir mais a respeito da freqüência da celebração da Ceia. O que impede que celebremos sempre a Eucaristia? Até que ponto não tornamos a Ceia um apêndice mensal em nossas liturgias? Uma outra questão que tem dividido nossa denominação é a participação de todos os batizados, inclusive as crianças, na Ceia do Senhor. O que, de fato, é indispensável para aqueles que desejam participar da Mesa? Consciência, vontade ou fé? Só os adultos precisam da Ceia? O que João Calvino diria sobre isto?
Precisamos conhecer o significado dos sacramentos. Isto não tem acontecido. Gostamos de discutir e opinar sem estudar. Espero que este texto seja um estímulo para aprofundamento. Indico três livros que consultei: - “Uma História Ilustrada do Cristianismo – Vol. 6 – A Era dos Reformadores”, de J. L. Gonzalez, Ed. Vida Nova; - “O Pensamento da Reforma”, de H. Strohl, ASTE; e - “Grandes Temas da Tradição Reformada”, (ed.) Donald K. Mckim, editado no Brasil pela Associação Evangélica Literária Pendão Real.



Autor: Rev. Emerson R. P. dos Reis
Pastor da IPI de Casa Verde
Presbiterio Santana


 

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